Idolatria
romana e o poder papal
(700-800)
Enquanto
os sarracenos ou árabes conquistavam a Ásia e o Norte da África, e arvoravam o
estandarte de Maomé nos pontos onde a cruz tinha até ali sido vista, os
verdadeiros servos de Cristo, embora ligados a Roma, não estavam ociosos no
Ocidente. Winifredo, um inglês de nobre estirpe, que pertencia à ordem de
monges beneditinos, homem cristão, ainda que supersticioso, trabalhou com ardor
em Hesse e Turíngia, e mais tarde o papa consagrou-o bispo sob o nome de Bonifácio.
Os bárbaros de Turíngia adoravam os deuses germânicos: Thor, Wodim, Friga,
Seator, Tuisco e outros, além dos que eram próprios das suas províncias.
Mostravam a maior fé na sua religião e os seus sacerdotes eram muito
respeitados. Estes ministros da idolatria pretendiam fazer toda a espécie de
milagres, e, pela habilidade das suas imposturas, inspiravam medo ao povo.
Vê-se um exemplo disso na construção do deus Pusterrich, uma imagem oca de
bronze, de três pés de altura que às escondidas enchiam de água, depois de lhe
terem tapado a boca; acendiam, em seguida, o lume por baixo dela e, a água
fervendo, fazia saltar a tampa da boca da imagem, e caía em jorros sobre os
adoradores transidos de medo.
WINIFREDO
NA TURÍNGIA E HESSE
Winifredo
foi, com uma coragem indomável, pelo meio do povo, mostrando as imposturas dos
seus sacerdotes e a falsidade da sua religião; e não teve escrúpulo de deitar o
machado às raízes do carvalho sagrado onde se dizia que habitava a suprema
deidade, apesar de os sacerdotes protestarem com veemência, e de a multidão
iludida esperar que ele caísse ali mesmo, morto pela sua impiedade. Quando a
árvore gigantesca caiu por terra, e Winifredo continuou tranqüilamente a
serrá-la para fazer pranchas para edificações, muitos se convenceram do erro, e
em muito curto espaço de tempo toda a Turíngia e Hesse professaram a fé
cristã.
Apesar
disso, a luz do Evangelho estava ali infelizmente encoberta pelos erros e
superstições do papismo; e é provável que o zelo de Bonifácio fosse mais o resultado
da sua devoção por Roma do que a sua devoção por Cristo. As igrejas construídas
por sua ordem e sob a sua direção eram mais notáveis pelas suas imagens do que
pelos seus evangelistas e ensinadores; e o sinal da cruz era mais familiar à
vista do que a pregação da Cruz ao ouvido. Distribuiam-se mais livremente as
relíquias dos santos do que as cópias das Sagradas Escrituras; e não será
demais afirmar que em muitos casos os assim chamados convertidos do paganismo
apenas tinham mudado a forma da sua idolatria. Sem dúvida houve casos de
verdadeira conversão, mas é certo que muitos dos cristãos professos eram apenas
cristãos feitos à força, e Alcuino, o historiador saxônio, conta-nos que
"tendo o rei Carlos Martel, avô de Carlos Magno, insistido com os antigos
saxônios e com todos os habitantes de Friesland, constrangeu uns com
recompensas e outros com ameaças, e eles se
'converteram' à fé cristã".
A
IDOLATRIA NA CRISTANDADE
Mas
a idolatria de que temos estado a falar não existia só em Hesse e na Turíngia.
Aumentara de uma maneira assustadora por toda a cristandade, que se entregava
aos maiores excessos de superstição. Colocavam velas acesas defronte das
imagens em muitas igrejas; o povo beijava-as e adorava-as de joelhos, e os
padres queimavam-lhe incenso, dando força ao erro popular de que elas faziam
milagres. Na verdade, esta mania imperava de tal modo no espírito de todos,
que até vestiam as imagens femininas e faziam delas madrinhas de seus filhos.
(Isto ainda hoje se dá.) Durante o pontificado de Gregório I, Sereno, o bispo
de Marselha, teve a coragem de proibir estes abomináveis usos, e destruiu
bastantes imagens, mas Gregório reprovou a sua fidelidade.
"Constou-nos", escreveu ele, "que animado por um zelo
irrefletido, quebrastes em pedaços as imagens dos santos, dando por desculpa
que não deviam ser adoradas. Na verdade teríamos inteiramente aprovado o vosso
procedimento, se tivésseis proibido que elas fossem adoradas, mas censuramo-vos
por as terdes quebrado. Porque uma coisa é adorar um quadro e outra aprender
por ele a apreciar o próprio objeto de adoração". Assim, por esse meio
insidioso se permitiu que o mal progredisse.
CRUZADA
DE LEÃO III CONTRA A IDOLATRIA
No
ano 726, Leão III, imperador do Oriente, assustado com o progresso dos maometanos,
cujo fim conhecido era exterminar a idolatria e afirmar a unidade de Deus, começou,
por interesse próprio, uma cruzada animada contra a adoração das imagens, e o
zelo que mostrou nessa nova empresa logo lhe criou o nome de Iconoclasta, que
significa quebrador de imagens.
A
maneira como o seu primeiro edito foi recebido mostrou de que modo o povo se
opunha formalmente a esta obra de reformação; e o resultado foi logo uma guerra
civil. Quando apareceu um segundo edito de maior alcance, um oficial a quem
Leão determinara que destruísse uma imagem notável do Salvador, foi, na
ocasião em que ia cumprir essa ordem, rodeado por uma multidão de mulheres que
lhe pediram que poupasse a imagem; ele, contudo, subiu a escada e ia proceder à
obra de destruição, mas foi logo deitado da escada a baixo e feito em pedaços. Não se
intimidando com isto, Leão puniu imediatamente os autores do crime, e mandando
ali outros oficiais para o mesmo fim, a imagem foi deitada a baixo e demolida.
SEPARAÇÃO
DAS IGREJAS LATINA E GREGA
A
rebelião que se seguiu foi prontamente abafada no império oriental pelas
medidas rápidas e sanguinárias do imperador, que autorizou uma perseguição. Mas
os italianos olharam para aquele ato com horror e indignação, e quando
receberam ordem para pôr o edito em prática no seu país levantaram-se todos, e
declararam que a sua aliança com o imperador estava acabada. Assim teve lugar a
separação final entre as igrejas latina e grega. O poder papal estava há muito
a espera disto, e Gregório II viu que era agora chegada a ocasião e aproveitou
o quanto pôde a excitação popular. A sua resposta ao edito, é cheia de ameaças
e blasfêmias, e abunda em ditos, os mais absurdos, e mostra uma ignorância das
Escrituras Sagradas que faria vergonha a uma criança cristã. Por uma confusão
extraordinária de nomes, confundiu o ímpio Uzias com o piedoso Ezequias,
dizendo que "o ímpio Uzias sacrilegamente tinha removido a serpente de
metal que Moisés fizera, e a despedaçara!" A sua carta não deixa, contudo,
de ser interessante como prova do espírito sedicioso e ar de desafio com que o
bispo respondeu ao seu amo imperial, assim como do sentimento do poder político
que enchia o peito do altivo eclesiástico. No final de sua carta chega a atrever-se
a fazer a falsa afirmação de que a conduta do imperador em abolir a adoração
das imagens estava "em contradição imediata com o testemunho unânime dos
anciãos e doutores da igreja, e repugna principalmente a autoridade dos seis
concílios gerais. Esta afirmação provocou a seguinte observação de um
historiador católico-romano: "Em nenhum dos concílios gerais se diz uma
palavra a respeito de imagens ou de adoração a elas, enquanto ao testemunho
unânime dos anciãos é igualmente falso o que naquela carta se diz".
Há
outro dito de um papa igualmente absurdo, pois ele afirma que logo que os
discípulos viram a Cristo, "apressaram-se a fazer retratos dele,
expondo-os por toda a parte, para que, à vista deles, os homens se pudessem
converter do culto de Satanás ao serviço de Cristo".
Gregório
morreu pouco depois, mas sucedeu-lhe um outro Gregório, homem de igual zelo e
maldade, que convocou um concilio de bispos, no qual foram confirmadas as
pretensões arrogantes do seu antecessor.
Excitado
pela insolência do papa Gregório III, o Imperador Leão armou uma esquadra e
mandou-a para a costa da Itália, mas uma tempestade reduziu-a a tal estado que
teve de voltar para o porto. Tanto o papa como o imperador morreram pouco
depois, no ano 741, e podia-se esperar que tudo sossegasse. Mas não foi assim.
As idéias iconoclastas de Leão, passaram, assim como a sua coroa, para seu
filho Constantino V, e a cruzada contra o culto das imagens continuou com o
mesmo vigor durante o seu reinado de trinta e quatro anos. O imperador que lhe
sucedeu no ano 775 também seguiu os mesmos princípios e política, mas o seu
reinado foi de pouca duração. Este imperador, Leão IV, foi assassinado por sua
mulher, a imperatriz Irene, que tomou as rédeas do governo no ano 780, em nome
do seu filho Constantino VI, que era então uma criança de dez anos. Foi este o
sinal para uma mudança na política, e a imperatriz, ligando-se com o papa,
tomou logo as suas medidas para a restauração do culto às imagens, sendo este
passo muito bem recebido tanto pelos padres como pelo povo.
O
CONCILIO DE NICÉIA
Em
787 foi convocado um concilio em Nicéia (o sétimo e último concilio geral
segundo a igreja grega), e foi resolvido que "como a venerável e
vivificante cruz, fossem levantadas as veneráveis e santas imagens... Quer
dizer, as imagens do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, da imaculada mãe de
Deus, dos anjos principais, e de todos os santos e homens bons. Que essas
imagens seriam tratadas como memórias santas, adoradas, beijadas, mas sem
especial adoração que é reservada ao Eterno. Qualquer que violar esta provada
tradição imemorial da igreja, e procurar remover qualquer imagem à força, ou
por astúcia, será deposto e excomungado se for eclesiástico; se for monge ou
leigo será excomungado". Foi depois votada uma maldição sobre todos os que
recusassem obedecer a este decreto blasfemo, e o clero reunido exclamou ao
mesmo tempo: "Anátema sobre todos que se comunicam com aqueles que não
adoram imagens! Glória sempre e eterna aos romanos ortodoxos, a João de
Damasco! Glória sempre e eterna a Gregório de Roma!" Este sétimo e último
concilio, diz Dean Waddington, "estabeleceu a idolatria como lei da igreja
cristã, e assim se concluiu o edifício da ortodoxia oriental".
ROMA
AMEAÇADA PELOS LOMBARDOS
Mas
a atividade dos iconoclastas não foi a única coisa que perturbou a igreja de
Roma, durante este século. Havia inimigos de outra espécie e mais perto dos
muros de Roma que lhe causaram muitas contrariedades e muita ansiedade. Estes
inimigos eram os lombardos, que tinham aproveitado os últimos distúrbios para
tomar posse do território do exarca de Revena, e ameaçavam agora a própria
Roma.
Nesta
dificuldade, o papa apelou para Pepino, rei dos francos, que devia bastantes
favores à Sé papal. Exercera ele anteriormente o cargo de mordomo-mor do palácio
de Childerico III, rei de França, o último monarca da linha merivingiana, e, na
verdade, governou o reino em lugar dele. Achando porém que as
responsabilidades do governo, sem a compensação do título de rei, eram
desagradáveis e aborrecidas, mas receando usurpar o trono sem a sanção de uma
autoridade superior, apelou para o papa. O papa era então Zacarias, e o pesado
e delicado encargo das negociações entre as duas partes coube a Bonifácio, que
estava nessa ocasião na corte dos francos, e que se achava ansioso por servir o
poderoso Pepino, e também não menos ansioso por servir o papa, cujos interesses
temporais ele bem compreendeu aumentariam grandemente se sancionasse aquele
ato criminoso.
Zacarias,
que tinha sido previamente avisado por Bonifácio do que se esperava dele, foi
então visitado por embaixadores da corte de Pepino, que lhe perguntaram se a
lei divina não permitia a um povo valente e guerreiro destronar um monarca
pusilâmine, indolente e incapaz de desempenhar qualquer das funções da
realeza, e o substituir por outro mais digno de governar, e que já tinha
prestado importantes serviços ao estado.
A
esta ingênua pergunta, Zacarias, que não desejava comprometer-se muito, deu a
seguinte resposta, que, apesar de ambígua, era suficiente: "Quem
legalmente tem o poder real também pode legalmente assumir o,título real."
Era
isso apenas o que Pepino esperava, e agora o caminho que tinha a seguir estava
claro. Childerico foi encerrado em um mosteiro, e o usurpador foi ungido rei
por Bonifácio. Foi coroado com grande pompa em Soissons, no ano 752.
ORIGEM
DOS DOMÍNIOS TEMPORAIS DO PAPADO
Este
procedimento, da parte do papa, era um golpe de verdadeira diplomacia, porque
agora que Roma estava sendo ameaçada pelos bárbaros, sob as ordens de Astolfo,
rei dos lombardos, o seu sucessor Estêvão II tinha na pessoa do monarca dos
francos um poderoso aliado com quem podia contar. Pepino respondeu prontamente
ao seu primeiro pedido de auxílio e atravessou os Alpes com o seu exército,
derrotando os lombardos, e entregando ao papa o território do exarca. Este
território pertencia por direito ao trono de Constantinopla, mas Pepino
declarou que não tinha ido batalhar a causa de nenhum homem, mas sim apenas a
favor de S. Pedro para obter perdão dos seus pecados.
A
doação assim feita formou o núcleo dos domínios temporais do papado, e foi a
origem do seu poder temporal.
Contudo,
tornou-se logo evidente que a doação de Pepino precisava ser confirmada,
porque apenas chegou à França, os bárbaros se precipitaram de novo sobre o
território e arrancaram-no aos seus novos possuidores. Ensoberbecidos pelo bom
êxito, e encontrando pouca ou nenhuma resistência, aproximaram-se outra vez da
cidade de Roma, exultantes e cheios de confiança.
O
PAPA PEDE SOCORRO DE NOVO
Então
o papa dirigiu urgentemente suas cartas a Pepino, de que este não fez caso, e
as coisas começaram a se tornarem sérias. Que havia a fazer? Pondo as suas esperanças
num último esforço, o papa escreveu uma terceira carta, redigindo-a como se
fosse redigida pelo próprio apóstolo Pedro.
Em
resposta a esta terceira carta, Pepino partiu com o seu exército e bem depressa
conseguiu expulsar dali os bárbaros. Morreu pouco depois, no ano 768,
sucedendo-lhe o seu filho Carlos Magno.
CARLOS
E ROMA
Os
lombardos deram começo pela terceira vez a uma invasão ao território papal; e o
papa, vendo o seu trono em perigo mais uma vez, apelou de novo para a corte dos
francos. Carlos Magno correspondeu a este apelo da melhor vontade e na véspera
do domingo de Páscoa entrou com o seu exército em Roma, onde lhe foi feita uma
brilhante recepção. As ruas estavam apinhadas de povo que o aplaudia. Õ clero
também ali se achava com cruzes e bandeiras, e as crianças das escolas foram ao
seu encontro com ramos de palmeira e de oliveira. Ao aproximar-se da igreja de
S. Pedro, logo que ouviu os hinos de boas-vindas, apeou do seu cavalo e fez o
resto da jornada a pé. Quando foi levado à presença do papa, subiu os degraus
do trono muito devagar, beijando cada degrau à proporção que ia subindo. Depois
beijou também o papa, findando assim a cerimônia da recepção. Durante a sua
estada na cidade, confirmou a doação de Pepino, aumentando-a com os ducados de
Spoleto e Benevento, Veneza, Istria e um outro território ao norte da Itália,
juntamente com a ilha de Córsega. Carlos Magno ficou em Roma durante as
festividades da Páscoa indo em seguida reunir-se ao seu exército. E quase
escusado acrescentar que o bom êxito acompanhou sempre as suas armas, vencendo
por onde quer que andasse, e que não tardou muito a dispersar completamente as
forças dos bárbaros, e livrar o trono papal do receio das suas incursões. No
fim da campanha proclamou-se a si próprio rei da Itália, e voltou para seus
domínios coberto de honras.
Falou-se
da submissão de Carlos Magno à igreja de Roma, mas essa submissão não era
completa. Ele decidia, de vez em quando, independentemente da Sé católica nas
suas opiniões, como por exemplo na oposição que fez no segundo concilio geral
de Nicéia, que decidira a favor do culto às imagens. Nessa ocasião foi
provavelmente bastante influenciado pelos conselhos piedosos de Alcuino,
diácono de York, a quem mandara uma cópia do decreto.
CONCILIO
DE FRANCFORT
Não
se sabe muito bem quais os passos que a igreja na Inglaterra deu a este respeito,
mas presume-se que Alcuino foi o seu intérprete no concilio de Francfort que se
reuniu para discutir este importante assunto no ano 794.
Por
recomendação de Carlos Magno, que tinha reunido o concilio, foi dispensado uma
atenção especial ao diácono inglês, e certamente ele não abusou da honra que
lhe foi conferida.
A
decisão do concilio, que parece ter sido redigido por Alcuino, era
absolutamente contrária ao culto às imagens, e as suas razões foram expostas
enfaticamente, e eram o mais convincente possível. Nem homens nem anjos deviam
de modo algum ser adorados, e o uso das imagens foi declarado como "não
somente não tendo a confirmação das Escrituras Sagradas, mas até como sendo
diretamente contrário aos escritos do Velho e do Novo Testamento". Esta
declaração com a sua referência à Palavra de Deus, podia bem ter sido feita por
Alcuino, porque era um homem que estudava a Bíblia com um coração intrépido, e
considerava-a como o único cânon e regra da sua vida. "A leitura das
Escrituras Sagradas", dizia ele, "é o conhecimento da
bem-aventurança eterna.. Nelas pode qualquer homem ver, como se fosse num
espelho, que espécie de ser moral ele é. A leitura das Escrituras Sagradas
purifica a alma do leitor, traz ao seu espírito o receio dos tormentos do Inferno
e eleva o seu coração às alegrias celestiais. O homem que deseja estar sempre
com Deus, deve amiudadas vezes orar, e estudar a sua santa Palavra, porque
quando oramos, falamos com Deus, e quando lemos o santo livro é Deus que fala
conosco. A leitura do livro santo dá uma dupla alegria aos seus leitores;
instrui de tal modo o seu espírito que os torna mais penetrantes, e ao mesmo
tempo desvia-os das vaidades mundanas e guia-os para o amor de Deus; assim
como o corpo se sustenta do alimento ingerido, assim a alma se sustenta da
comunhão divina, como diz o Salmista: 'Oh! quão doce são as tuas palavras ao
meu paladar, mais doces do que o mel à minha boca!'
Um
outro eclesiástico que também se distinguiu no concilio de Francfort foi
Paulino, bispo de Aquiléia. Negou com ousadia, o valor de qualquer intercessão,
ou meditação, que não fosse por meio de Cristo.
Os
testemunhos de homens como estes tornam bastante evidente a vida espiritual
que ainda havia naquele deserto de erros e superstições em que a igreja de
Roma se encontrava então, mas infelizmente quão poucos são esses testemunhos!
DECADÊNCIA
ESPIRITUAL
A
maior parte do clero, sem exceção dos bispos, vivia num estado de letargia
espiritual e fraqueza viciosa; na verdade, o bispo supremo, o papa de Roma, era
quem praticava mais iniqüidades. Desde o século IV para diante, os sucessores
da cadeira de "S. Pedro" eram os próprios que punham mais em
evidência o desenvolvimento da decadência da igreja e das suas vidas, como os
seus próprios historiadores as contam, e mostram como, infelizmente, eles iam
descendo para a grande apostasia. No ano 358, o papa Libério foi acusado de
prevaricação e heresia por Hilário, bispo de Poitiers, e oito anos mais tarde,
outro papa, de nome Damaso, incorreu no crime de assassínio, pois teve de
passar por cima dos cadáveres de 160 dos seus adversários para chegar até a
cadeira papal. Em 385 o papa
Siríaco
impôs o celibato ao clero, e estabeleceu este péssimo dogma por meio de um
decreto, e daí proveio a principal causa da imoralidade da Idade Média. Mais
tarde ainda, o pontificado de Zózimo tornou-se notável por causa do seu grande
orgulho e presunção; e os bispos da África referem-se a isso numa carta ao seu
sucessor Bonifácio em que dizem: "Esperamos, visto que foi do agrado de
Deus elevar-vos ao trono da igreja de Roma, não continuar a sentir os efeitos
daquele orgulho e arrogância mundanas que nunca se deviam encontrar na igreja
de Cristo". A eleição do próprio Bonifácio deu lugar a desordens tais que
o poder civil teve de intervir para manter a paz; e a sua conduta posterior
prova bem que a carta dos piedosos bispos foi bem depressa olvidada ou
completamente desprezada.
Mas
indicar a qüinquagésima parte das irregularidades e monstruosidades que
provinham do trono papal, seria impossível. Podíamos encher páginas a descrever
o caráter de homens que foram colocados no trono sem eleição; de diáconos que
foram elevados àquela dignidade, preterindo-se assim piedosos presbíteros; de
um papa que se distinguiu pela sua avareza e pelo seu zelo em oprimir os
pobres; de um leigo que, aspirando aquele elevado cargo, foi feito diácono,
prior e bispo em poucas horas, para lhe permitir satisfazer a sua ambição,
sendo, contudo, expulso do seu lugar por um monge lombardo, o qual, por sua
vez, foi logo suplantado por um rival mais forte.
Os
bispos em muitos casos não eram em nada melhores do que os papas. Em lugar de
olharem pelo rebanho de Deus, eram notáveis pela sua avareza, que muitas vezes
os levava a cometer os maiores excessos de crueldade e extorsão. Os padres
eram muito culpados a este respeito, e Gregório, o Grande, acusa-os de se
apoderarem dos bens dos outros, e de ridicularizarem aqueles que procediam de
um modo humilde e casto. Mesmo quando entre eles existia algum zelo religioso,
era geralmente numa causa inútil; e freqüentemente se levantavam questões
fúteis, até que o espírito de polêmica ficava bastante irritado. Assim a
questão da tonsura clerical foi, por algum tempo, motivo de contenda em muitos
pontos, e especialmente os missionários célticos e italianos divergiam a esse
respeito. Um dos partidos, seguindo as igrejas do Oriente, rapava a frente da
cabeça em forma de crescente; o outro, o italiano, rapava a coroa redonda. Este
último modo prevaleceu, e no princípio do século VIII os monges de lona
consentiram em receber a tonsura latina, e por esta submissão tornaram-se escravos
voluntários de Roma.
Este
estado de coisas era na verdade triste, mas ainda havia de se tornar mais
triste: e apenas estamos agora no princípio da época das trevas, ou Idade
Média.
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