sexta-feira, 25 de maio de 2012

o poder papal


Idolatria romana e o poder papal
(700-800)

Enquanto os sarracenos ou árabes conquistavam a Ásia e o Norte da África, e arvoravam o estandarte de Maomé nos pontos onde a cruz tinha até ali sido vista, os verdadei­ros servos de Cristo, embora ligados a Roma, não estavam ociosos no Ocidente. Winifredo, um inglês de nobre estir­pe, que pertencia à ordem de monges beneditinos, homem cristão, ainda que supersticioso, trabalhou com ardor em Hesse e Turíngia, e mais tarde o papa consagrou-o bispo sob o nome de Bonifácio. Os bárbaros de Turíngia adora­vam os deuses germânicos: Thor, Wodim, Friga, Seator, Tuisco e outros, além dos que eram próprios das suas províncias. Mostravam a maior fé na sua religião e os seus sacerdotes eram muito respeitados. Estes ministros da ido­latria pretendiam fazer toda a espécie de milagres, e, pela habilidade das suas imposturas, inspiravam medo ao po­vo. Vê-se um exemplo disso na construção do deus Pusterrich, uma imagem oca de bronze, de três pés de altura que às escondidas enchiam de água, depois de lhe terem tapado a boca; acendiam, em seguida, o lume por baixo dela e, a água fervendo, fazia saltar a tampa da boca da imagem, e caía em jorros sobre os adoradores transidos de medo.

WINIFREDO NA TURÍNGIA E HESSE
Winifredo foi, com uma coragem indomável, pelo meio do povo, mostrando as imposturas dos seus sacerdotes e a falsidade da sua religião; e não teve escrúpulo de deitar o machado às raízes do carvalho sagrado onde se dizia que habitava a suprema deidade, apesar de os sacerdotes pro­testarem com veemência, e de a multidão iludida esperar que ele caísse ali mesmo, morto pela sua impiedade. Quando a árvore gigantesca caiu por terra, e Winifredo continuou tranqüilamente a serrá-la para fazer pranchas para edificações, muitos se convenceram do erro, e em muito curto espaço de tempo toda a Turíngia e Hesse pro­fessaram a fé cristã.
Apesar disso, a luz do Evangelho estava ali infelizmen­te encoberta pelos erros e superstições do papismo; e é pro­vável que o zelo de Bonifácio fosse mais o resultado da sua devoção por Roma do que a sua devoção por Cristo. As igrejas construídas por sua ordem e sob a sua direção eram mais notáveis pelas suas imagens do que pelos seus evan­gelistas e ensinadores; e o sinal da cruz era mais familiar à vista do que a pregação da Cruz ao ouvido. Distribuiam-se mais livremente as relíquias dos santos do que as cópias das Sagradas Escrituras; e não será demais afirmar que em muitos casos os assim chamados convertidos do paganismo apenas tinham mudado a forma da sua idolatria. Sem dú­vida houve casos de verdadeira conversão, mas é certo que muitos dos cristãos professos eram apenas cristãos feitos à força, e Alcuino, o historiador saxônio, conta-nos que "ten­do o rei Carlos Martel, avô de Carlos Magno, insistido com os antigos saxônios e com todos os habitantes de Friesland, constrangeu uns com recompensas e outros com ameaças, e eles se  'converteram'  à fé cristã".

A IDOLATRIA NA CRISTANDADE
Mas a idolatria de que temos estado a falar não existia só em Hesse e na Turíngia. Aumentara de uma maneira assustadora por toda a cristandade, que se entregava aos maiores excessos de superstição. Colocavam velas acesas defronte das imagens em muitas igrejas; o povo beijava-as e adorava-as de joelhos, e os padres queimavam-lhe incen­so, dando força ao erro popular de que elas faziam mila­gres. Na verdade, esta mania imperava de tal modo no espírito de todos, que até vestiam as imagens femininas e faziam delas madrinhas de seus filhos. (Isto ainda hoje se dá.) Durante o pontificado de Gregório I, Sereno, o bispo de Marselha, teve a coragem de proibir estes abomináveis usos, e destruiu bastantes imagens, mas Gregório reprovou a sua fidelidade. "Constou-nos", escreveu ele, "que ani­mado por um zelo irrefletido, quebrastes em pedaços as imagens dos santos, dando por desculpa que não deviam ser adoradas. Na verdade teríamos inteiramente aprovado o vosso procedimento, se tivésseis proibido que elas fossem adoradas, mas censuramo-vos por as terdes quebrado. Por­que uma coisa é adorar um quadro e outra aprender por ele a apreciar o próprio objeto de adoração". Assim, por esse meio insidioso se permitiu que o mal progredisse.

CRUZADA DE LEÃO III CONTRA A IDOLATRIA
No ano 726, Leão III, imperador do Oriente, assustado com o progresso dos maometanos, cujo fim conhecido era exterminar a idolatria e afirmar a unidade de Deus, come­çou, por interesse próprio, uma cruzada animada contra a adoração das imagens, e o zelo que mostrou nessa nova empresa logo lhe criou o nome de Iconoclasta, que significa quebrador de imagens.
A maneira como o seu primeiro edito foi recebido mos­trou de que modo o povo se opunha formalmente a esta obra de reformação; e o resultado foi logo uma guerra civil. Quando apareceu um segundo edito de maior alcance, um oficial a quem Leão determinara que destruísse uma ima­gem notável do Salvador, foi, na ocasião em que ia cumprir essa ordem, rodeado por uma multidão de mulheres que lhe pediram que poupasse a imagem; ele, contudo, subiu a escada e ia proceder à obra de destruição, mas foi logo deitado da escada a baixo e feito em pedaços. Não se intimi­dando com isto, Leão puniu imediatamente os autores do crime, e mandando ali outros oficiais para o mesmo fim, a imagem foi deitada a baixo e demolida.

SEPARAÇÃO DAS IGREJAS LATINA E GREGA
A rebelião que se seguiu foi prontamente abafada no império oriental pelas medidas rápidas e sanguinárias do imperador, que autorizou uma perseguição. Mas os italia­nos olharam para aquele ato com horror e indignação, e quando receberam ordem para pôr o edito em prática no seu país levantaram-se todos, e declararam que a sua aliança com o imperador estava acabada. Assim teve lugar a separação final entre as igrejas latina e grega. O poder papal estava há muito a espera disto, e Gregório II viu que era agora chegada a ocasião e aproveitou o quanto pôde a excitação popular. A sua resposta ao edito, é cheia de ameaças e blasfêmias, e abunda em ditos, os mais absur­dos, e mostra uma ignorância das Escrituras Sagradas que faria vergonha a uma criança cristã. Por uma confusão ex­traordinária de nomes, confundiu o ímpio Uzias com o pie­doso Ezequias, dizendo que "o ímpio Uzias sacrilegamente tinha removido a serpente de metal que Moisés fizera, e a despedaçara!" A sua carta não deixa, contudo, de ser inte­ressante como prova do espírito sedicioso e ar de desafio com que o bispo respondeu ao seu amo imperial, assim como do sentimento do poder político que enchia o peito do altivo eclesiástico. No final de sua carta chega a atre­ver-se a fazer a falsa afirmação de que a conduta do impe­rador em abolir a adoração das imagens estava "em con­tradição imediata com o testemunho unânime dos anciãos e doutores da igreja, e repugna principalmente a autorida­de dos seis concílios gerais. Esta afirmação provocou a se­guinte observação de um historiador católico-romano: "Em nenhum dos concílios gerais se diz uma palavra a res­peito de imagens ou de adoração a elas, enquanto ao teste­munho unânime dos anciãos é igualmente falso o que na­quela carta se diz".
Há outro dito de um papa igualmente absurdo, pois ele afirma que logo que os discípulos viram a Cristo, "apressa­ram-se a fazer retratos dele, expondo-os por toda a parte, para que, à vista deles, os homens se pudessem converter do culto de Satanás ao serviço de Cristo".
Gregório morreu pouco depois, mas sucedeu-lhe um ou­tro Gregório, homem de igual zelo e maldade, que convo­cou um concilio de bispos, no qual foram confirmadas as pretensões arrogantes do seu antecessor.
Excitado pela insolência do papa Gregório III, o Impe­rador Leão armou uma esquadra e mandou-a para a costa da Itália, mas uma tempestade reduziu-a a tal estado que teve de voltar para o porto. Tanto o papa como o impera­dor morreram pouco depois, no ano 741, e podia-se esperar que tudo sossegasse. Mas não foi assim. As idéias icono­clastas de Leão, passaram, assim como a sua coroa, para seu filho Constantino V, e a cruzada contra o culto das imagens continuou com o mesmo vigor durante o seu rei­nado de trinta e quatro anos. O imperador que lhe sucedeu no ano 775 também seguiu os mesmos princípios e política, mas o seu reinado foi de pouca duração. Este imperador, Leão IV, foi assassinado por sua mulher, a imperatriz Ire­ne, que tomou as rédeas do governo no ano 780, em nome do seu filho Constantino VI, que era então uma criança de dez anos. Foi este o sinal para uma mudança na política, e a imperatriz, ligando-se com o papa, tomou logo as suas medidas para a restauração do culto às imagens, sendo este passo muito bem recebido tanto pelos padres como pelo povo.


O CONCILIO DE NICÉIA
Em 787 foi convocado um concilio em Nicéia (o sétimo e último concilio geral segundo a igreja grega), e foi resolvi­do que "como a venerável e vivificante cruz, fossem levan­tadas as veneráveis e santas imagens... Quer dizer, as ima­gens do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, da imaculada mãe de Deus, dos anjos principais, e de todos os santos e homens bons. Que essas imagens seriam tratadas como memórias santas, adoradas, beijadas, mas sem especial adoração que é reservada ao Eterno. Qualquer que violar esta provada tradição imemorial da igreja, e procurar re­mover qualquer imagem à força, ou por astúcia, será de­posto e excomungado se for eclesiástico; se for monge ou leigo será excomungado". Foi depois votada uma maldição sobre todos os que recusassem obedecer a este decreto blasfemo, e o clero reunido exclamou ao mesmo tempo: "Anátema sobre todos que se comunicam com aqueles que não adoram imagens! Glória sempre e eterna aos romanos ortodoxos, a João de Damasco! Glória sempre e eterna a Gregório de Roma!" Este sétimo e último concilio, diz Dean Waddington, "estabeleceu a idolatria como lei da igreja cristã, e assim se concluiu o edifício da ortodoxia oriental".

ROMA AMEAÇADA PELOS LOMBARDOS
Mas a atividade dos iconoclastas não foi a única coisa que perturbou a igreja de Roma, durante este século. Ha­via inimigos de outra espécie e mais perto dos muros de Roma que lhe causaram muitas contrariedades e muita ansiedade. Estes inimigos eram os lombardos, que tinham aproveitado os últimos distúrbios para tomar posse do ter­ritório do exarca de Revena, e ameaçavam agora a própria Roma.
Nesta dificuldade, o papa apelou para Pepino, rei dos francos, que devia bastantes favores à Sé papal. Exercera ele anteriormente o cargo de mordomo-mor do palácio de Childerico III, rei de França, o último monarca da linha merivingiana, e, na verdade, governou o reino em lugar de­le. Achando porém que as responsabilidades do governo, sem a compensação do título de rei, eram desagradáveis e aborrecidas, mas receando usurpar o trono sem a sanção de uma autoridade superior, apelou para o papa. O papa era então Zacarias, e o pesado e delicado encargo das nego­ciações entre as duas partes coube a Bonifácio, que estava nessa ocasião na corte dos francos, e que se achava ansioso por servir o poderoso Pepino, e também não menos ansioso por servir o papa, cujos interesses temporais ele bem com­preendeu aumentariam grandemente se sancionasse aque­le ato criminoso.
Zacarias, que tinha sido previamente avisado por Boni­fácio do que se esperava dele, foi então visitado por embai­xadores da corte de Pepino, que lhe perguntaram se a lei divina não permitia a um povo valente e guerreiro destro­nar um monarca pusilâmine, indolente e incapaz de de­sempenhar qualquer das funções da realeza, e o substituir por outro mais digno de governar, e que já tinha prestado importantes serviços ao estado.
A esta ingênua pergunta, Zacarias, que não desejava comprometer-se muito, deu a seguinte resposta, que, ape­sar de ambígua, era suficiente: "Quem legalmente tem o poder real também pode legalmente assumir o,título real."
Era isso apenas o que Pepino esperava, e agora o cami­nho que tinha a seguir estava claro. Childerico foi encerra­do em um mosteiro, e o usurpador foi ungido rei por Boni­fácio. Foi coroado com grande pompa em Soissons, no ano 752.

ORIGEM DOS DOMÍNIOS TEMPORAIS DO PAPADO
Este procedimento, da parte do papa, era um golpe de verdadeira diplomacia, porque agora que Roma estava sendo ameaçada pelos bárbaros, sob as ordens de Astolfo, rei dos lombardos, o seu sucessor Estêvão II tinha na pes­soa do monarca dos francos um poderoso aliado com quem podia contar. Pepino respondeu prontamente ao seu pri­meiro pedido de auxílio e atravessou os Alpes com o seu exército, derrotando os lombardos, e entregando ao papa o território do exarca. Este território pertencia por direito ao trono de Constantinopla, mas Pepino declarou que não ti­nha ido batalhar a causa de nenhum homem, mas sim ape­nas a favor de S. Pedro para obter perdão dos seus peca­dos.
A doação assim feita formou o núcleo dos domínios temporais do papado, e foi a origem do seu poder tempo­ral.
Contudo, tornou-se logo evidente que a doação de Pepi­no precisava ser confirmada, porque apenas chegou à França, os bárbaros se precipitaram de novo sobre o terri­tório e arrancaram-no aos seus novos possuidores. Ensoberbecidos pelo bom êxito, e encontrando pouca ou nenhu­ma resistência, aproximaram-se outra vez da cidade de Roma, exultantes e cheios de confiança.

O PAPA PEDE SOCORRO DE NOVO
Então o papa dirigiu urgentemente suas cartas a Pepi­no, de que este não fez caso, e as coisas começaram a se tornarem sérias. Que havia a fazer? Pondo as suas espe­ranças num último esforço, o papa escreveu uma terceira carta, redigindo-a como se fosse redigida pelo próprio apóstolo Pedro.
Em resposta a esta terceira carta, Pepino partiu com o seu exército e bem depressa conseguiu expulsar dali os bár­baros. Morreu pouco depois, no ano 768, sucedendo-lhe o seu filho Carlos Magno.

CARLOS E ROMA
Os lombardos deram começo pela terceira vez a uma invasão ao território papal; e o papa, vendo o seu trono em perigo mais uma vez, apelou de novo para a corte dos fran­cos. Carlos Magno correspondeu a este apelo da melhor vontade e na véspera do domingo de Páscoa entrou com o seu exército em Roma, onde lhe foi feita uma brilhante re­cepção. As ruas estavam apinhadas de povo que o aplau­dia. Õ clero também ali se achava com cruzes e bandeiras, e as crianças das escolas foram ao seu encontro com ramos de palmeira e de oliveira. Ao aproximar-se da igreja de S. Pedro, logo que ouviu os hinos de boas-vindas, apeou do seu cavalo e fez o resto da jornada a pé. Quando foi levado à presença do papa, subiu os degraus do trono muito deva­gar, beijando cada degrau à proporção que ia subindo. De­pois beijou também o papa, findando assim a cerimônia da recepção. Durante a sua estada na cidade, confirmou a doação de Pepino, aumentando-a com os ducados de Spoleto e Benevento, Veneza, Istria e um outro território ao norte da Itália, juntamente com a ilha de Córsega. Carlos Magno ficou em Roma durante as festividades da Páscoa indo em seguida reunir-se ao seu exército. E quase escusado acrescentar que o bom êxito acompanhou sempre as suas armas, vencendo por onde quer que andasse, e que não tardou muito a dispersar completamente as forças dos bárbaros, e livrar o trono papal do receio das suas incur­sões. No fim da campanha proclamou-se a si próprio rei da Itália, e voltou para seus domínios coberto de honras.
Falou-se da submissão de Carlos Magno à igreja de Ro­ma, mas essa submissão não era completa. Ele decidia, de vez em quando, independentemente da Sé católica nas suas opiniões, como por exemplo na oposição que fez no se­gundo concilio geral de Nicéia, que decidira a favor do cul­to às imagens. Nessa ocasião foi provavelmente bastante influenciado pelos conselhos piedosos de Alcuino, diácono de York, a quem mandara uma cópia do decreto.

CONCILIO DE FRANCFORT
Não se sabe muito bem quais os passos que a igreja na Inglaterra deu a este respeito, mas presume-se que Alcuino foi o seu intérprete no concilio de Francfort que se reuniu para discutir este importante assunto no ano 794.
Por recomendação de Carlos Magno, que tinha reunido o concilio, foi dispensado uma atenção especial ao diácono inglês, e certamente ele não abusou da honra que lhe foi conferida.
A decisão do concilio, que parece ter sido redigido por Alcuino, era absolutamente contrária ao culto às imagens, e as suas razões foram expostas enfaticamente, e eram o mais convincente possível. Nem homens nem anjos de­viam de modo algum ser adorados, e o uso das imagens foi declarado como "não somente não tendo a confirmação das Escrituras Sagradas, mas até como sendo diretamente contrário aos escritos do Velho e do Novo Testamento". Esta declaração com a sua referência à Palavra de Deus, podia bem ter sido feita por Alcuino, porque era um ho­mem que estudava a Bíblia com um coração intrépido, e considerava-a como o único cânon e regra da sua vida. "A leitura das Escrituras Sagradas", dizia ele, "é o conheci­mento da bem-aventurança eterna.. Nelas pode qualquer homem ver, como se fosse num espelho, que espécie de ser moral ele é. A leitura das Escrituras Sagradas purifica a alma do leitor, traz ao seu espírito o receio dos tormentos do Inferno e eleva o seu coração às alegrias celestiais. O ho­mem que deseja estar sempre com Deus, deve amiudadas vezes orar, e estudar a sua santa Palavra, porque quando oramos, falamos com Deus, e quando lemos o santo livro é Deus que fala conosco. A leitura do livro santo dá uma du­pla alegria aos seus leitores; instrui de tal modo o seu espí­rito que os torna mais penetrantes, e ao mesmo tempo des­via-os das vaidades mundanas e guia-os para o amor de Deus; assim como o corpo se sustenta do alimento ingeri­do, assim a alma se sustenta da comunhão divina, como diz o Salmista: 'Oh! quão doce são as tuas palavras ao meu paladar, mais doces do que o mel à minha boca!'
Um outro eclesiástico que também se distinguiu no concilio de Francfort foi Paulino, bispo de Aquiléia. Negou com ousadia, o valor de qualquer intercessão, ou medita­ção, que não fosse por meio de Cristo.
Os testemunhos de homens como estes tornam bastan­te evidente a vida espiritual que ainda havia naquele de­serto de erros e superstições em que a igreja de Roma se en­contrava então, mas infelizmente quão poucos são esses testemunhos!

DECADÊNCIA ESPIRITUAL
A maior parte do clero, sem exceção dos bispos, vivia num estado de letargia espiritual e fraqueza viciosa; na verdade, o bispo supremo, o papa de Roma, era quem pra­ticava mais iniqüidades. Desde o século IV para diante, os sucessores da cadeira de "S. Pedro" eram os próprios que punham mais em evidência o desenvolvimento da deca­dência da igreja e das suas vidas, como os seus próprios historiadores as contam, e mostram como, infelizmente, eles iam descendo para a grande apostasia. No ano 358, o papa Libério foi acusado de prevaricação e heresia por Hi­lário, bispo de Poitiers, e oito anos mais tarde, outro papa, de nome Damaso, incorreu no crime de assassínio, pois teve de passar por cima dos cadáveres de 160 dos seus ad­versários para chegar até a cadeira papal. Em 385 o papa
Siríaco impôs o celibato ao clero, e estabeleceu este péssi­mo dogma por meio de um decreto, e daí proveio a princi­pal causa da imoralidade da Idade Média. Mais tarde ain­da, o pontificado de Zózimo tornou-se notável por causa do seu grande orgulho e presunção; e os bispos da África refe­rem-se a isso numa carta ao seu sucessor Bonifácio em que dizem: "Esperamos, visto que foi do agrado de Deus ele­var-vos ao trono da igreja de Roma, não continuar a sentir os efeitos daquele orgulho e arrogância mundanas que nunca se deviam encontrar na igreja de Cristo". A eleição do próprio Bonifácio deu lugar a desordens tais que o poder civil teve de intervir para manter a paz; e a sua conduta posterior prova bem que a carta dos piedosos bispos foi bem depressa olvidada ou completamente desprezada.
Mas indicar a qüinquagésima parte das irregularidades e monstruosidades que provinham do trono papal, seria impossível. Podíamos encher páginas a descrever o caráter de homens que foram colocados no trono sem eleição; de diáconos que foram elevados àquela dignidade, preterindo-se assim piedosos presbíteros; de um papa que se dis­tinguiu pela sua avareza e pelo seu zelo em oprimir os pobres; de um leigo que, aspirando aquele elevado cargo, foi feito diácono, prior e bispo em poucas horas, para lhe permitir satisfazer a sua ambição, sendo, contudo, expulso do seu lugar por um monge lombardo, o qual, por sua vez, foi logo suplantado por um rival mais forte.
Os bispos em muitos casos não eram em nada melhores do que os papas. Em lugar de olharem pelo rebanho de Deus, eram notáveis pela sua avareza, que muitas vezes os levava a cometer os maiores excessos de crueldade e extor­são. Os padres eram muito culpados a este respeito, e Gregório, o Grande, acusa-os de se apoderarem dos bens dos outros, e de ridicularizarem aqueles que procediam de um modo humilde e casto. Mesmo quando entre eles existia al­gum zelo religioso, era geralmente numa causa inútil; e freqüentemente se levantavam questões fúteis, até que o espírito de polêmica ficava bastante irritado. Assim a questão da tonsura clerical foi, por algum tempo, motivo de con­tenda em muitos pontos, e especialmente os missionários célticos e italianos divergiam a esse respeito. Um dos par­tidos, seguindo as igrejas do Oriente, rapava a frente da cabeça em forma de crescente; o outro, o italiano, rapava a coroa redonda. Este último modo prevaleceu, e no princí­pio do século VIII os monges de lona consentiram em rece­ber a tonsura latina, e por esta submissão tornaram-se es­cravos voluntários de Roma.
Este estado de coisas era na verdade triste, mas ainda havia de se tornar mais triste: e apenas estamos agora no princípio da época das trevas, ou Idade Média.

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